Como preparar as crianças para o mercado de trabalho do futuro?
Colunista da VocêRH e do Valor Econômico
No meu dia a dia como recrutadora, eu recebo muito esse tipo de pergunta. Acredito ser interessante compartilhar o que tenho respondido sobre esse tema. Mas, antes de ir à resposta, seguem três insights que considero importantes de serem analisados:
● Em 2018, em uma apresentação na ONU de NY, a Alicia Bárcena, chefe da Comissão Econômica da América Latina, afirmou que 65% das crianças, que naquele ano estavam entrando na escola primária, quando se formassem teriam empregos que ainda não existem.
● Em 2014, Rainer Strack, sócio sênior do Boston Consulting Group, afirmou que a economia digital deixaria mais de 30% de pessoas desqualificadas em 2030, segundo as previsões da sua consultoria.
● Uma pesquisa recente da McKinsey revela que a transformação digital na pandemia acelerou o equivalente a cinco anos em 60 dias.
Quando olhamos para as crianças que estão ao nosso lado, precisamos levar em consideração que existe uma real probabilidade de que esses futuros profissionais venham a ingressar em postos de trabalho que ainda não existem hoje. Outras estarão em profissões que já existem, mas que caminham para transformações importantes em pouco tempo. Prepará-las para um caminho semelhante aos nossos pode ser um erro que gerará frustrações e despreparo no futuro.
A importância do modelo de aprendizado na escola
A minha geração foi preparada com base em conhecimento técnico. Basicamente, as crianças eram orientadas a decorar os temas e a acompanhar aulas bastante expositivas. Hoje, a maioria das escolas ainda segue o modelo tradicional, mas já é possível notar um movimento positivo de transição, com instituições de ensino estimulando que os alunos pensem, já que informações, dados e conteúdos já estão amplamente disponíveis no mundo virtual.
Habilidades comportamentais sempre serão importantes
A minha recomendação, na orientação desses futuros profissionais, é focarmos, principalmente, no desenvolvimento de habilidades comportamentais. Entre essas competências, considero que algumas devem seguir necessárias pelos próximos anos, como por exemplo:
● learning agility (a capacidade de aprender rápido);
● capacidade de síntese;
● capacidade analítica;
● autogerenciamento;
● raciocínio lógico;
● adaptabilidade;
● comunicação;
● confiança;
● eloquência;
● empatia;
● calma; e
● foco.
É algo que, no meu entender, deve incluir, ainda:
● autoconhecimento – saber quem somos, o que nos move, nosso valor, nossas crenças e nossas forças e pontos de melhoria; e
● inteligência emocional – uma habilidade que nos permite ter um posicionamento mais consciente diante de pessoas e situações difíceis.
Como estimular essas habilidades na rotina das crianças?
Depende da rotina de vida de cada família. Mas é possível que a criança inicie o desenvolvimento de muitas habilidades comportamentais em momentos simples:
● ao ser estimulada a propor soluções para questões que enfrentam com amigos e professores e, na medida do possível, resolver esses assuntos por meio de conversa e argumentos sólidos;
● ao serem convidadas para momentos de reflexão sobre algum tema, com incentivo para que elas pesquisem e formulem uma análise própria sobre o assunto;
● ao serem estimuladas a fazerem boas perguntas para terem respostas mais alinhadas ao que precisam;
● ao fazer um bolo para entender que algumas coisas levam tempo para ficarem prontas;
● na convivência com outras pessoas durante atividades extracurriculares;
● ao ficar responsável pela organização do próprio quarto e brinquedos;
● ao ser estimulada a pensar em vez de oferecer uma resposta pronta;
● ao respeitar a fila dos brinquedos durante um passeio no parque;
● ao cumprir tarefas, horários e compromissos escolares;
● ao trocar o Whatsapp por uma conversa olho no olho;
● quando sabem verbalizar o que desejam e precisam;
● ao praticar esportes individuais ou coletivos; e
● no compromisso com a leitura;
● entre tantos outros momentos.
Ensine sua criança a pensar
Lembre-se de que a Geração Alfa é formada por nativos digitais. São pessoas que já nascem plenamente inseridas no contexto de Internet e tecnologia. Se, hoje, a inteligência artificial (IA) está bem avançada e inserida no nosso dia a dia, imagine daqui a alguns anos.
Essas crianças precisarão saber extrair o melhor da IA, fazendo as melhores perguntas para as ferramentas. Daí vem a grande necessidade de ensinar essas novas gerações a pensar, a analisar dados que eles têm disponíveis para tomar decisões.
Uma dica de leitura sobre o tema
Recentemente, li um livro muito interessante sobre o tema. Ele se chama “O mesmo de sempre”, que foi lançado no mercado brasileiro pela Companhia das Letras. Na obra, o autor, Morgan Housel, aborda uma série de comportamentos e pensamentos humanos que não mudam com o passar dos séculos. Ele faz uma reflexão interessante sobre a dificuldade de termos uma previsibilidade sobre o futuro e, ao mesmo tempo, o quanto é previsível a essência humana. E que, então, deveríamos focar nisso, no que não muda. Vale a pena ler.
Considere a essência de cada profissão
Outro ponto interessante de pensarmos é na essência de cada profissão. Por exemplo, a essência da função de um médico é cuidar do ser humano. É importante saber como essa profissão será desenvolvida e quais ferramentas de tecnologia irão apoiá-la, mas, para ter melhor desempenho, os profissionais de medicina sempre precisarão ter as habilidades que lhes permitem um melhor contato com o outro.
Observe mais e pode menos
Um último ponto, mas não menos importante: é sempre bom quando encontramos no mercado de trabalho pessoas que gostam do que fazem. Como não é possível prever com exatidão quais profissões vão existir no futuro, fica mais difícil querer que uma criança siga os passos profissionais de algum adulto ao seu redor.
O meu conselho, considerando esse contexto, é: observe mais e pode menos. Observe o que encanta a sua criança e estimule que, na rotina, ela tenha algum contato com essa paixão. Se elas gostarem de determinado tema, possivelmente será boa naquilo e, consequentemente, terão mais estímulo para se qualificarem e serem bem-sucedidas.
Quando somos responsáveis pelo cuidado com uma criança, é natural que a gente queira o bem dela. Tentamos orientar para que elas tenham um futuro mais confortável do que o que temos e há um grande valor nessa nossa ambição. Só precisamos ter atenção para que cobranças e pressões não se traduzam em ansiedade.
Acredito que os futuros profissionais precisam de orientação com apoio e acolhimento, já dentro de casa.
ISIS borge sangiovani
Colunista da VocêRH e do Valor Econômico